Emergent Ecologies
Chica
Lutando pela garantia do espaço feminino
na pesca de Barra Grande
Conheci Chica através de Tonton, seu marido e presidente da Colônia de pescadores de Maraú. Depois de uma busca na internet, consegui seu contato e lhe enviei uma mensagem me apresentando, e apresentando minha intenção de pesquisa. Desde o início, Tonton mostrou-se um representante dedicado e generoso. Disponível a minhas dúvidas e conversas, é mencionado sempre com muito carinho e gratidão pelas pescadoras. Ele então, me falou de sua esposa, que apesar de não ser “colonizada”, é uma referência das pescadoras de Barra Grande. Chica possui 54 anos e é professora da escola Municipal, por isso não está “colonizada”, mas pescar é sua maior paixão. Como ela diz:
“Pode me chamar para qualquer tipo de pescaria que eu vou! Se você inventar uma pescaria nova, pode ser do jeito que for, é só chamar que eu vou.”
Eu amo pescar
A pescaria para Chica está associada às relações familiares durante sua infância e juventude, em que toda a família pescava junta, quando o modo de vida local girava principalmente em torno da pesca. Aprendeu a pescar com seus pais e parentes, e durante sua infância, a pescaria era não só a forma de garantia alimentar, mas também a diversão, o convívio familiar, a identidade coletiva, e o meio de geração de renda para complementos alimentares. Casada com presidente da Colônia de pescadores Z 62, a pesca é grande parte da vida de Chica: seja na prática, já que vai todos os dias no final de tarde pescar com as parentes na ponte, e quando não está em sala de aula pela manhã, pegar polvo nas marés; seja na vida do marido que vive exclusivamente da pesca; ou seja nas questões políticas que envolvem a pesca da região. Como ela conta:
“Eu sou de família de pescador, e minha família também é de pescador, só meus filhos que não são.”
Chica pescando
Acompanhei Chica várias vezes na pescaria de polvo nos recifes de corais, e na pescaria de peixes na ponte e pude observar a sua posição de liderança frente às outras mulheres pescadoras, que a tem como representante. Certa vez, sentadas na ponte, um pequeno barco de homens jogavam a rede bem próximo às varas delas, e uma das pescadoras acionou Chica para intervir. Primeiro Chica confrontou os homens lhes informando que a pesca de rede ali era proibida e que se permanecessem poderiam perder suas redes. Depois do confronto, Chica voltou a pescadora que lhe havia acionado e disse:
“Você não tem boca pra falar não? Tem que me chamar?”
Chica e os bicheiros
A Fala de Chica retrata sua presença na pesca feminina de Barra Grande, que apesar de não se dizer liderança, é tida como referência para as pescadoras, e sempre está presente, e em contato com elas. Foi ela que me ajudou muitas vezes a contatá-las ou reuní-las, mas nunca me disse ser líder, ou nada parecido. Para ela, todas são iguais, e todas têm o mesmo poder de reivindicar seus direitos. Presenciei alguns confrontos de Chica defendendo o espaço de pesca feminino. Frequentemente existem homens que tentam colocar suas redes muito próximo à ponte, e segundo me afirmou ela, existe uma legislação que estabelece a distância de 200 metros da ponte para a pesca de rede. Conforme o presidente da colônia Z-62, existem duas legislações que regulamentam a prática de rede naquele píer: a primeira é uma lei federal que proíbe a prática da pesca de rede em pontes de embarque e desembarque de passageiros por colocar em risco as embarcações; a segunda legislação trata-se de um decreto municipal que estabelece a distância de 200m de sentido Oceano, a partir da ponte para a colocação de redes de pesca.
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A pesca de rede próxima à ponte é percebida por elas como um grande desrespeito, já que ao se colocar a rede, os peixes ficam todos presos a ela, e não chegam em seus anzóis. De fato, se o espaço das mulheres está, em geral, restrito à pesca continental, este espaço deveria ser resguardado à elas, garantindo seu direito à pesca, já que os homens, em geral, pescam embarcados. A tarrafa é um tipo de pesca exclusivamente masculino, devido ao esforço físico necessário para o seu bom desempenho, assim como a pesca embarcada, que é majoritariamente masculina, já que as mulheres estão sócio-culturalmente mais vinculadas aos cuidados domésticos, de crianças e parentes e por isso mais fixadas em terra.
Chica limpando o peixe
Assim, a pesca continental, não embarcada, é a possibilidade que lhes permite desempenhar seu papel social de cuidado doméstico e familiar, associada à pesca de polvos, mariscos e peixes pequenos que estão na praia, nos recifes de corais e no mangue. A pesca feminina em Barra Grande, parece apresentar uma contradição: por um lado, as pescadoras são muito conhecidas, e respeitadas pela comunidade, por proprietários de restaurantes do ramo turístico e por turistas que se divertem tirando fotos com elas na ponte; por outro lado, elas enfrentam constantemente conflitos com pescadores que invadem seus espaços de pesca disputando territórios físicos e simbólicos, e/ou com turistas e comerciantes do ramo turístico que as vêem como passíveis de atrapalhar o bom funcionamento do turismo, ou degradar ambientalmente o destino turístico.
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Diferente da maioria das mulheres, Chica pesca também na lancha, mas só quando acompanhada por algum homem “que leva a lancha”, em geral seu marido, ou um senhor amigo que às vezes leva ela e Lia. A maioria das mulheres pescadoras de Barra Grande dizem não pescar assim ou porque enjoam, ou porque não gostam do tipo de pescaria, mas Chica afirma que ama sair para pescar “na laje” - local onde pescam em mar aberto, e que sente falta, quando não consegue ir com um de seus companheiros de pesca. Porém, a tradição pesqueira familiar de Chica, parece não estar sendo incorporada pela nova geração de seus filhos e netos. Como ela conta, dos filhos, nenhum é pescador, e acredita que os netos também terão outro destino. Chica afirma que ela própria nunca os incentivou nessa vida, já que apesar de ser sua grande paixão, ela não deseja essa vida dura aos filhos, e acredita que o estudo formal, pode lhes proporcionar uma vida mais confortável.
Bicheiro no buraco do polvo
A pesca para Chica, assim como para a maioria das pescadoras que conheci em Barra Grande é contraditória. Por um lado, é sua referência de infância e juventude, é o meio de estar em família, de compartilhar afetos e alimentos, de manter seus modos de vida, saberes e valores tradicionais que confrontam a modernidade. Por outro lado, é uma vida sem conforto, e que propicia menos ascensão financeira, o que acaba por lhes fazer direcionar a educação de seus filhos em outra direção:
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“Meus filhos mesmo, se eles tivessem crescido igual a mim, pescando o dia todo, talvez eles fizessem, mas eu não incentivei isso, eu mandei pra escola, e sempre incentivei estudar.”
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Assim, Chica mantêm-se entre um passado que alimenta sua identidade, e um futuro diferente para seus filhos e netos, que já não se identificam como pescadores, e não carregam os saberes tradicionalmente transmitidos em família até a geração de seus pais, como demonstra em sua fala:
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“Não é desfazendo da pesca, ao contrário, eu tenho muito orgulho de ser pescadora, apesar de não ser colonizada, e se você me perguntar o que eu gosto de fazer da vida é pescar. Você pode me oferecer um banquete, mas se você me chamar pra pescar eu vou pescar. Eu amo limpar peixe!
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Inclusive na alimentação, muitas pescadoras ressaltam que alguns de seus filhos e netos sequer comem determinadas espécies de peixes e mariscos. “o nojo” com o polvo. por exemplo, é uma característica que acompanha alguns jovens e crianças descendentes dessas mulheres, inclusive na família de Chica.
O polvo de Chica
O passado e o presente chocam-se na vida dessas mulheres, em um processo de transformação acelerada que vive a Vila de Barra Grande. Por outro lado, o orgulho de pescadora pode ser observado em diversas situações, como quando ridicularizadas, especialmente por homens jovens, no píer, por pescar só peixes pequenos, Chica afirma com certo ar de revolta que prefere peixes pequenos: “Eles são muito melhores, muito mais gostosos!" Em sua fala há certamente um orgulho de se comer o que se pesca. Ao mesmo tempo que elas não utilizam técnicas mais agressivas para a pesca (isca artificial, rede), e não desejam pegar peixes maiores, sentem-se desrespeitadas por estas técnicas estarem presentes em seus espaços de pesca, algo semelhante ao mergulho com relação à pesca do polvo.
Chica “futucando” o buraco do polvo
As lutas dessas mulheres, estão frequentemente encabeçadas por Chica, confrontando homens que não respeitam seus espaços de pesca, resistindo na pescaria do polvo contra turistas e ambientalistas que desrespeitam seus modos de vida tradicional, denunciando pescas que desrespeitam a legislação ambiental, e permanecendo no pequeno comércio local, de peixes pequenos pescados na ponte, que são vendidos para os moradores locais e alimentam a comunidade, já que restaurantes não compram peixes pequenos variados. A transição entre passado e modernidade é marcada especialmente pelo capitalismo como transformador das relações na região, e está no cotidiano dos nativos e forasteiros da vila, que possuem formas diferentes de se relacionar com os pescados, com a ideia de acúmulo, com o meio ambiente e os modos de vida tradicionais. Um forte exemplo dessa transformação nas formas do lugar é a extinta Festa da Tainha.
Primeira Festa da Tainha
Antigamente, como conta Chica, havia uma importante festa na cidade, que reunia pescadores de toda a região, a Festa da Tainha. Na época de sarraboagem, entre maio e agosto, os pescadores chegavam a pegar mil quilos de tainha em único dia, e então fazia-se uma grande festa para os próprios pescadores, divertirem-se e desfrutarem do alimento em comunhão. As tainhas eram doadas pelos próprios pescadores e delas eram preparados diversos pratos, todos tendo a tainha como ingrediente principal. A espécie alimentava toda a comunidade, mas com o tempo, a tentativa de transformar a festa em “um meio de ganhar dinheiro”, fez com que os pescadores se desanimassem e fossem, aos poucos parando de doar os peixes para festividade.
Tainha
A pesca feminina em Barra Grande, marca-se pela luta constante para a manutenção de seus modos de vida pesqueiros. Como relembram, há aproximadamente 3 anos atrás, a tentativa de proibir Chica e suas companheiras de pesca de entrarem na ponte para pescar, foi enfrentada por elas como uma luta de resistência. Como conta Chica, após a reforma do píer (que elas chamam ponte) para o embarque e desembarque de turistas, as empresas que administram o transporte de turistas tentaram impedir o acesso das pescadoras ao seu local de pesca costumeiro. Argumentavam que a permanência das pescadoras nas laterais e ponta do píer, atrapalhava o transporte e o desembarque dos turistas. As pescadoras tiveram que lutar para conseguirem manter seu espaço de pesca. A fala de Lia demonstra a revolta do grupo:
“A gente pesca lá de antigamente, não é de agora, porque chegou turista e arrumou a ponte, a gente não pode mais pescar? Tá errado!”
Proibido pescar no píer
Chica conta que ela própria foi conversar com o prefeito, que garantiu não ter estabelecido nenhuma limitação ao acesso das pescadoras à ponte. Entretanto, para não atrapalharem os turistas, elas agora só podem pescar na parte mais profunda que a ponte alcança, após as 18 horas, quando encerram as atividades diárias das empresas de transporte. Chica sabe muito bem de seus direitos e sente-se plenamente segura para fazer denúncias e confrontos, para defender seu espaço na pesca e o de suas companheiras. Certa vez, quando um homem novo na região começou a colocar água sanitária nos buracos de polvo para pegá-los com mais facilidade, ciente do impacto ambiental causado por essa ação, Chica levou a denúncia ao presidente da colônia, seu marido, que tratou do assunto impedindo a continuidade da ação degradadora. Como se sabe, a relação extrativista de comunidades tradicionais, são uma das principais formas de manutenção da biodiversidade e preservação ambiental em áreas protegidas, porém, como também se sabe, comumente essas populações são desrespeitadas e submetidas a situações preconceituosas ou de retirada de seus territórios e proibidas de exercerem seus modos de vida a partir de discursos ambientais que desconsideram a ação positiva de suas existências nesses territórios.