Emergent Ecologies


pesca artesanal
Localizada no recôncavo baiano, há 100km de Salvador, a Reserva Extrativista Marinha da Baía do Iguape está dividida entre os municípios de Maragojipe e Cachoeira. As comunidades que hoje formam a Reserva, surgiram na época da escravidão sec XVII a XIX fruto das fazendas de açucar e tabaco abandonadas após os declínios econômicos dessas culturas. As comunidades de escravizados e seus descendentes, abandonados à própria sorte pelos fazendeiros, permaneceram no território, vivendo principalmente da agricultura de subsistência e pesca artesanal na região desde então.

Mapa de área da Reserva Extrativista Marinha da baía do Iguape
Fonte: https://uc.socioambiental.org/pt-br/arp/2584 Acesso: 26/08/2024
A Reserva atualmente abrange uma área total de 10.074,00ha., envolvendo manguezais e águas internas brasileiras e é composta por vinte distritos, sendo dezessete pertencentes ao município de Maragogipe, sede da Unidade de Conservação, e três ao município de Cachoeira. Com uma população de 4.960 pessoas, cerca de 903 famílias estão envolvidas com atividades de pesca e mariscagem na baía do Iguape (Machado, 2016). Sendo que a pesca artesanal na RESEX figura como fonte principal de alimentação e representa não só segurança alimentar, mas também uma fonte de renda para a maioria das famílias da região. Praticada tradicionalmente há séculos, a pesca artesanal reúne técnicas e memórias ancestrais, dos povos afrodescendentes que ocuparam este território desde o período colonial, como escravos nas fazendas de açúcar e tabaco. São comuns os relatos de marisqueiras afirmando que aprenderam a mariscar acompanhando suas mães e familiares ao mangue quando criança:
"Eu venho de uma história de remanescente de pessoas que foram escravizadas e tiveram que lutar pela sua sobrevivência, lutar pela sua liberdade. Eu venho de uma família humilde, uma família pobre, como todos os negros e pescadores, e assim dando sequencia à minha família e às minhas heranças(...) A minha mãe era marisqueira e eu aprendi a pegar Sururu com ela, Lambreta, Mapê…”
Janete Barbosa - Comunidade do Guaí

Camboas ao longo rio - método artesanal tradicional de pesca e mariscagem
História
Muito embora o Recôncavo fizesse jus à sua reputação de região açucareira até seu declínio no início do século XIX, grande parte de sua vegetação nativa foi mantida, o tipo de solo, a topografia e o clima determinaram a distribuição dos cultivos que se divida em três zonas principais: O açúcar concentrou-se na orla norte da Baía do Iguape; os solos mais arenosos e situados em terrenos mais elevados de Cachoeira, no rio Paraguaçu, tornaram-se centro da agricultura do fumo. Finalmente, no sul do Recôncavo, predominou a agricultura de subsistência. Algumas famílias cultivavam açúcar em Iguape e combinavam essa atividade à lavoura do fumo nos campos de Cachoeira e a pecuária no interior, constituindo-se na elite da região. Muito embora, açúcar e fumo dependessem do trabalho escravo e dividissem os porões dos navios mercantes destinados a Salvador, em grande medida as duas culturas eram separadas geográfica e socialmente. (SCHWARTZ, 1988).
Em Maragogipe, a indústria Suerdiek, uma das maiores produtoras de charuto do estado, empregava cerca de 5 mil trabalhadores, e fechou suas portas na segunda metade do século XX, contribuindo também para um grande número de moradores desempregados na região. Outros fatores também tiveram importância no aumento da população emigrante para trabalhar na construção de empreendimentos da indústria petrolífera (Petrobras) e Naval (Estaleiro Enseada do Paraguaçu), que empregava nativos, mas também muitos forasteiros e que com o findar das obras e o declínio de suas operações resultou em uma população empobrecida que possuía duas opções: migração ou pesca e extrativismo (PROST, 2010).



No final dos anos 1990, o Projeto de Conservação e Utilização Sustentável da Diversidade Biológica Brasileira (PROBIO), do Ministério do Meio Ambiente, estudava áreas prioritárias para conservação e uso sustentável avaliando condições socioeconômicas e a tendência de ocupação do território brasileiro, indicando áreas prioritárias. A partir de um abaixo assinado envolvendo os moradores de Santiago do Iguape, São Francisco do Paraguaçu, Sindicato dos trabalhadores rurais de Cachoeira e pescadores vinculados à Colônia de pesca Z7 de Maragogipe, e em 11 de agosto de 2000, foi criada a Reserva Extrativista Marinha Baía do Iguape sobre uma área de 8.117,53 hectares, sendo 2.831,24 de manguezal e 5.286,29 de águas internas brasileiras. O intuito da criação da reserva, por parte dos órgãos ambientais, era conservar o ecossistema estuarino de grande valor ecológico, cultural e econômico, sobretudo para as comunidades de pescadores artesanais que habitavam o seu entorno (ZAGATTO, 2013). Já por parte da população engajada, era garantir seus modos de vida extrativistas, e ao mesmo tempo atrair políticas públicas que melhorassem suas condições de vida, como acesso à água, luz, e esgoto, estruturas que não existiam na região naquele momento.

Canoas com gaiolas para a pesca artesanal de Siri

Canoas estacionadas às margens da Baía do Iguape
Em 2006, uma alteração na área na Resex foi aprovada para a autorização da construção do Estaleiro Enseada do Paraguaçu. Apesar de um aumento em tamanho na área total, a nova poligonal foi problemática por diversos motivos. Primeiramente uma alteração em área já estabelecida descredibilizou a real capacidade protetiva da unidade de conservação e seus órgãos gestores, especialmente para a criação de uma empreendimento que geraria grande impacto socioambiental na região. Além disso, a nova área da região de São Francisco do Paraguaçu, incluída no polígono para “compensar” a área do estaleiro, tratava-se de uma área já tombada como patrimônio histórico pelo IPHAN, o que resultou institucionalmente na submissão do patrimônio ao ICMbio (ZAGATTO, 2013). Além disso, parte da comunidade que foi envolvida pelos novos limites da Resex na região de São Francisco do Paraguaçu, estava em processo de demarcação territorial como território quilombola, e em 2007 quando o RTDI foi publicado pelo INCRA, reconhecendo o território quilombola, o processo de regularização do território quilombola não foi finalizado devido à sobreposição dos territórios (ARAÚJO, DI BRANDA E MOLINU, 2019). Em meio aos processos de estabelecimento e alteração do polígono da RESEX, e ao processo de delimitação quilombola de São Francisco do Paraguaçu, diversos movimentos étnicos e sociais se organizaram na região. As aberturas democráticas da CF 1988 e complementar o decreto 4887 de 2003 que: “regulamenta[va] o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos” fortaleceram pleitos de autodeclaração enquanto quilombolas e a defesa de seus direitos.
Em 2006, a Bahia já contava com 178 comunidades quilombolas com certidão de autorreconhecimento junto à Fundação Cultural Palmares, das quais nove se localizam na zona rural de Maragojipe. Em 2007, o Conselho Quilombola de Maragojipe, formado por líderes de quase todas as comunidades quilombolas do município e por marcos do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), reivindicou ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) a regularização fundiária de um território contínuo das comunidades Guerém, Baixão do Guaí, Tabatinga, Jirau Grande, Guaruçu, Porto da Pedra e Kizanga, localizadas no distrito do Guaí, no dia três de outubro de 2007, o INCRA iniciou o processo de regularização fundiária do território dessas comunidades.(ZAGATTO, 2011). Nesse ponto, diversas comunidades do entorno da baía do Iguape que compartilham identidades enquanto extrativistas e quilombolas, vivenciaram o estabelecimento da Resex como uma forma de garantia de seus territórios e também de preservação de seus modos e meios de vida.
Esta gravação foi realizada em São Francisco do Conde, município do Recôncavo Baiano reconhecido por seus terreiros e pela resistência cultural do candomblé. A cidade fica a cerca de 60 km da Resex Santiago do Iguape, território onde a espiritualidade se entrelaça com os manguezais e as águas, elementos centrais para os rituais e a cosmovisão afro-brasileira. A Egbomi Ana Rita Dayube destaca que a natureza é a morada dos deuses e sua proteção é um ato de devoção.




Contexto atual

Pescador e marisqueiras remam colocando as gaiolas para mariscagem do Siri
Atualmente ainda existem muitas comunidades que lutam por seu reconhecimento e titulação como comunidades quilombolas, as dificuldades são muitas, já que enfrentam uma legislação burocrática de atendimento inacessível para a maioria da população. Além disso, a morosidade jurídica dos processos tornam extremamente longos e desgastantes tais lutas comunitárias. As pressões do capital também dificultam o processo, como por exemplo relatos em diversas comunidades da Resex de proprietários de terras (grandes fazendeiros) que opõem-se violentamente a tais processos demarcatórios que interfiram em suas explorações nos territórios, impondo inclusive sanções a trabalhadores, e ameaças à moradores que apoiem tais movimentos. Mas além de tudo isso, essas comunidades ainda enfrentam desafios de outra ordem. A crescente violência devido ao grande aumento demográfico somado à extrema pobreza na região e o acúmulo de conflitos ambientais gerados pelos empreendimentos ao entorno da Resex impactam profundamente seus modos de vida e vem reduzindo as possibilidades de pesca e mariscagem. A violência, impede inclusive a livre circulação e acesso aos manguezais que encontram-se dominados pelo tráfico de drogas, especialmente em algumas regiões específicas de Maragogipe. Conforme nos alertaram diversas vezes, a disputa entre facções tem gerado controle sobre o trânsito de pesquisadores e situações de agressão e constrangimento. Para os moradores, alguns perderam inclusive suas casas, e são impedidos de irem ou retornarem do mangue em determinadas ocasiões, o que para as mulheres tem sido ainda mais impactante, já que são elas que majoritariamente transitam pelo mangue para exercerem suas atividades de subsistência. A limitação da circulação pelo território e de acesso às comunidades, interferiu nesta pesquisa, afetando a proximidade com determinadas comunidades, porém, foi medida adotada conforme instruções do próprio órgão gestor - ICMbio, que para a segurança dos pesquisadores não recomendou a visita, a determinadas comunidades, desacompanhados dos agentes ambientais.

Baía do Iguape
Mulheres na mariscagem da Resex do Iguape
A pesca feminina na região da baía do Iguape, se dá majoritariamente em torno de 3 espécies:A Ostra (Crassostrea rhizophorae) é colhida nas camboas (estrutura de paus construída dentro da maré) ou cultivadas em bancadas de bambu, tanto por homens quanto por mulheres. É um dos principais mariscos comercializados na região, e conforme as próprias marisqueiras me afirmaram, 90% do cultivo e coleta de ostra (dúzia e camboa) é feminino. O cultivo da Ostra tornou-se tão eficaz que as comunidades do Conselho Quilombola da bacia e Vale do Iguape decidiram criar uma festa, a Festa da Ostra, atualmente em sua 16 edição, e que foi criada com o intuito de escoar a alta produção do marisco. Porém, o marisco mais pescado segundo Pereira, 2013, é o Sururu (Mytella guyanensis), em maior quantidade, e maior facilidade para retirada, beneficiamento e transporte, o Sururu é a base da alimentação de muitas famílias pesqueiras na região da Resex, sendo uma espécie capturada e beneficiada exclusivamente pelas mulheres. O marisco também é comercializado através de atravessadores, assim como a Ostra e o Siri.

Balaio cheio de Ostras na volta da mariscagem

Mulheres mariscando no mangue do Engenho da Ponte
Já o Siri, atualmente é majoritariamente capturado pelos homens, com gaiolas dispostas ao longo da maré, e recolhidas diariamente. Antigamente a técnica de captura de Siri era também feminina com o uso do jereré, porém, com a inserção das gaiolas, que são utilizadas na pesca embarcada, as mulheres têm deixado a pesca do marisco, jé que devem manter-se em terra vinculadas aos cuidados domésticos e familiares, e a pesca de gaiola rende maior quantidade que a pesca de jereré. Assim, atualmente, as mulheres participam apenas do beneficiamento do marisco. Após capturados, os Siris são deixados em baldes com mulheres que trabalham com o que denominam “Siri de ganho”. A expressão refere-se à remuneração pela catagem do Siri que não foi por elas capturado, apenas beneficiado. Assim, a mariscagem na região da Baía do Iguape é majoritariamente feminina, artesanal e de grande importância na segurança alimentar das famílias que ali habitam. Porém, além da pesca, a vida na Reserva extrativista é diversa, essas mulheres não são apenas marisqueiras. Ao se apresentarem, destacam sempre suas múltiplas capacidades extrativistas como:
“Meu nome é Agda, eu sou pescadora, marisqueira, farinheira, dendezeira, apicultora, dona de casa e mãe.”
Deixando claro que o modo de vida extrativista é composto pela extração de diversas fontes de alimento e subsistência no meio ambiente em que vivem. Além de seus papeis sociais e políticos que também às compõem: a maioria são mães, donas de casa, lideranças locais, e principalmente na região do Conselho quilombola, elas ocupam múltiplas funções ativistas em suas comunidades: são componentes de diversos conselhos políticos (Conselho da Resex, Conselho Quilombola, Núcleo de Mulheres Marias Felipas, CECVI- Centro de Educação e Cultura Vale do Iguape), além de professoras das escolas quilombolas, gestoras de comunicação, guias de turismo, e o que mais for necessário ser, para apoiarem sua comunidade em seu crescimento e empoderamento sócio-político. O cuidado dessas mulheres com seus territórios é garantia de sobrevivência tanto de suas comunidades, como do meio ambiente no qual e do qual vivem. Preocupações quanto a preservação das matas e mangues, cuidados com os resíduos e contaminações fazem parte da vida destas mulheres que sofrem na própria pele, literalmente, o fruto dos impactos ambientais trazidos pelos diversos empreendimentos na região. Tais impactos afetam as condições do mangue cada dia mais, gerando a queda na quantidade de pescados, doenças, mal estar, incômodos, alterações nos ciclos reprodutivos, insurgência de novas espécies, e desaparecimento de outras, desmatamento, poluição, alteração das características da água, da lama e do manguezal.
Conflitos ambientais e impactos sinérgicos
“Por a gente morar numa reserva extrativista rodeada de empresa, muitas empresas se instalaram, e isso impacta bastante diretamente, nessa reserva, nesse manguezal, no ecossistema, a gente percebeu muita mudança. Diminuição do pescado, diminuição da mariscagem. Espécies que desapareceram, alguma espécie invasora, “Coral sol”, tem um tal de “Siri Caxangá”, que não é daqui, que invadiram a reserva e que de alguma forma modificou a nossa forma de pesca.”
Janete Barbosa, marisqueria - Comunidade Capanema

Entrada do manguezal na maré seca
Infelizmente a delimitação da Reserva Extrativista não é suficiente para proteger o meio ambiente ampliado, seu bioma, suas comunidades e seus modos de vida. Empreendimentos na área de entorno da Resex e que atingem o principal curso d'água que desemboca na baía do Iguape, o Rio Paraguaçu, além das manobras de órgãos governamentais para permitir suas operações nas zonas de entorno, tem gerado muitos impactos. A grande questão, como afirma a própria gestora da Resex, Rafaela Farias, é que a distribuição de poderes fiscalizadores em diferentes instâncias de poder (Federal, estadual e municipal) dificulta uma percepção mais completa da composição de todos esses impactos sob o mesmo ambiente. A gestora afirma que é importante considerar os impactos sinérgicos causados pela soma da atuação de todos os diferentes empreendimentos que são autorizados por diferentes instâncias de governo. Avaliados separadamente, poderiam ser compensados com medidas mitigadoras, porém, conjuntamente causam a destruição do bioma e dos meios e modos de vida locais. Entretanto, essa destruição é invisibilizada, dissolvida nas diferentes licenças de operação dos empreendimentos:
“O impacto de uma indústria potencializando o impacto da outra!”
Rafela Farias - Gestora da Resex

Navio desembarcando no Estaleiro Enseada do Paraguaçu
Estaleiro Enseada do Paraguaçu
O Estaleiro Enseada do Paraguaçu S. A é uma iniciativa privada que possui 70% do capital controlado pela EEP Participações S.A. (Odebrecht, 50%; UTC Engenhahia, 25% e OAS, 25%) e 30% do capital pela Kawasaki Heavy Industries (ARAÚJO, DI BRANDA E MOLINU, 2019). A instalação do Estaleiro Enseada do Paraguaçu S. A. deu-se com o intuito de expansão da indústria naval no Brasil a partir da década de 2000. A escolha da localização considerou a dinamização da economia regional que encontrava-se em declínio nas indústrias canavieira e tabagista. Alterando a demarcação original da Reserva Extrativista, a alteração dos limites da Resex, supostamente resolveria o problema legal, porém, a operação de um empreendimento de tal porte gerou diversos impactos socioeconômicos-ambientais na região, mesmo estando formalmente fora da zona delimitada pela Resex. O primeiro deles refere-se à inclusão do território de São Francisco do Paraguaçu na nova poligonal da Resex, que naquele momento lutava pelo reconhecimento como comunidade quilombola, a sobreposição dos territórios inviabilizou a titulação.

Para a região de Maragogipe e distritos, o empreendimento trouxe ainda outros danos. A demanda por trabalhadores trouxe um grande contingente populacional que sobrecarregou a estrutura local (mobilidade, urbanização e especulação imobiliária). Além disso, o grande número de forasteiros vindos de centros urbanos, trouxe consigo necessidades e problemas urbanos para a comunidade rural, aumentando extensivamente o uso de drogas e a prostituição na região (COSTA, 2020). No sentido ambiental, a construção do Estuário também trouxe impactos profundos para a comunidade pesqueira da região: em primeiro lugar houve uma grande área desmatada para a construção do empreendimento, que resultou na redução das áreas de manguezais, de espécies e de áreas pesqueiras; além disso, a dragagem do estuário que suspendeu durante seis meses a atividade pesqueira das comunidades é apontada pelos pescadores e marisqueiras como a responsável pelo surgimento do vulgo “cansanção”, esponja marinha que surgiu na lama do mangue nessa época e que causa grande prurido em contato com a pele das marisqueiras. Existem ainda relatos do surgimento de novas espécies como o “Siri Lemo”, e o “Coral Sol” cuja proliferação é favorecida pela contenção de água doce causada pela Barragem Pedra do Cavalo (ARAÚJO, DI BRANDA E MOLINU, 2019), e assim apresentam-se os impactos sinérgicos.
Campo de futebol no manguezal em Ponta de Souza
Pedra do cavalo
“Teve a dessalinização da água, a água no inverno está doce, no verão tá muito salgada, que antes não era assim, antes a salinidade da água era mais normal, hoje ta anormal por conta de uma hidrelétrica, a Pedra do Cavalo que se instalou na margens do rio Paraguaçu, e eles fazem essa prisão para produção de energia e eles fazem a solta da água e não respeita né? Desrespeitando toda essa dinâmica da maré. Aí quando eles soltam a água fica doce demais e aí mata o marisco, apodrece.”
Janete Barbosa, marisqueira - Comunidade do Guaí
A poucos quilômetros do estuário do Paraguaçu encontra-se a barragem Pedra do Cavalo. A estrutura, construída em 1982, tem a capacidade de armazenar aproximadamente 4 bilhões de metros cúbicos de água, em uma área de 163 km2. A princípio a unidade foi construída para apoiar a rede de abastecimento de água de Salvador e região, porém, em 2005, passou a funcionar além de represa, como usina hidrelétrica operada pela empresa Votorantim. A grande questão é que, alterando-se o fluxo das águas, impacta-se no ambiente aquático como um todo. Modificações nos nutrientes, salinidade, vegetação ciliar e propagação das marés, são as principais mudanças nestes casos, somado à variação de volume de água com a operação da usina hidrelétrica que gera desequilíbrios devido à variação temporal e de salinidade que afetam os ciclos reprodutivos das espécies e podem contribuir até mesmo para a proliferação de espécies invasoras (ARAÚJO, DI BRANDA E MOLINU, 2019).

Barragem Pedra do Cavalo

Manguezal inundado
Tais alterações impactam diretamente a vida pesqueira na região, que se encontra à mercê das variações do volume de água que aumenta e abaixa conforme os desejos da Votorantim arrastando redes, vegetação, peixes, mariscos e embarcações, levam camboas e matam diversas espécies. As Ostras frequentemente morrem quando se abre as comportas da usina e o estuário é tomado por um volume muito alto de água doce.Apesar de operarem sem o Licenciamento Ambiental devido, havendo inclusive a solicitação no Ministério público, por parte do ICMBio - órgão gestor da Resex, de suspensão das operações, com a burocracia entre as diferentes instâncias de poder, influenciadas pelos interesses políticos locais, mantêm vista grossa para a operação da usina, com autorização de operação emitida pelo INEMA - órgão estadual responsável pela fiscalização ambiental, mesmo que o empreendimento não tenha apresentado ainda EIA-RIMA (Estudo de Impacto Ambiental - Relatório de Impacto Ambiental) que são fundamentais para dimensionar toda a destruição ambiental e social que promovem na Resex e nos modos de vida locais.

Plantação de eucalipto às margens da estrada que liga Santiago do Iguape à Cachoeira
IndústriaS da Celulose
As indústrias de celulose também estão presentes no entorno da Resex e geram grande impacto. A Bracel possui amplas plantações de eucalipto na região de Santo Amaro, porém, devido a uma lei municipal que proíbe o cultivo de Eucalipto em grande escala no município de Cachoeira, a Bracel vem investindo no cultivo de Bambu. Além disso, acontece também a prática comum de uma continuidade territorial de pequenos cultivos para driblar a lei municipal. As plantações de Eucalipto e Bambu drenam o território, alterando os lençois freáticos que alimentam os poços das comunidades, e a baía.
A Copener Florestal é uma empresa pertencente ao grupo transnacional Royal Golden Eagle, sediado na Indonésia. A empresa possui plantios próprios de eucalipto, no litoral norte da Bahia e mantém um programa de fomento florestal, por meio do qual financia o plantio, incluindo serviços e insumos, cabendo ao agricultor repor tais custos, em madeira, à época da colheita. Sendo que a empresa ainda pode fazer adiantamentos anuais proporcionalmente à área plantada. Assim como em outras regiões, no Vale do Iguape, os monocultivos de eucalipto vêm trazendo impactos relacionados à ocupação de áreas de preservação permanente, desmatamento de vegetação nativa e poluição, em decorrência do uso intensivo de agrotóxicos. Além destes impactos, os plantios fomentados de eucalipto vêm acirrando as disputas de terras, uma vez que as populações que tradicionalmente ocupam os territórios vêm sendo ameaçadas de expulsão por parte dos fazendeiros locais interessados em aderir ao programa florestal da empresa Copener/Royal Golden Eagle. (p.78, ARAÚJO, DI BRANDA E MOLINU, 2019)

Plantações de Eucalipto extensas às margens das rodovias
Além das plantações, as indústrias de celulose ainda impactam de outras formas a baía. Às margens do rio Paraguaçu, a empresa Santo Expedito Indústria de Papeis Ltda, indústria de papel reciclado, utiliza enorme quantidade de água em seus processos produtivos, águas tais que são posteriormente despejadas no leito do rio. Apesar da empresa afirmar que seu processo de produção não faz uso de produtos químicos, a comunidade afirma que são despejados poluentes (“água verde”) nas águas do Paraguaçu.
Mastrottoo
Assim como na indústria de papel e celulose, a fabricação dos curtumes, faz intenso uso da água em diversos processos químicos, que resultam em grande volume de resíduos que são lançados no leito do Rio Paraguaçu e que penetram o solo da região causando grande poluição e alterando significamente a qualidade da água no estuário. Conforme afirmou a própria gestora da Resex, como a fiscalização ambiental da empresa está nas mãos do INEMA (órgão estadual fiscalizador), apesar do impacto causado na área da Resex, o ICMBio encontra-se de mãos atadas. O INEMA por sua vez, já alterou 5 vezes o nível permitido de metais pesados dispensados na água da baía pela empresa, como o sulfato de cromo que é altamente tóxico. O metal é utilizado para a transformação da pele dos animais em couro, altamente resistente à biodegradação.
Desaparecimento e inserção de espécies
Desde a década de 1970, com a criação da Barragem Pedra do Cavalo, existem relatos sobre o desaparecimento de espécies na região: Robalo, Tainha, Camarão, Arraia, Bagre são algumas das espécies frequentemente mencionadas. A comunidade acredita que com a alteração da salinidade da água aumentada pela contenção da água doce na represa, transforma-se o ambiente, diferenciando-o do que era usado por diversas espécies para desova e reprodução.Os desmatamentos que ocorreram nas décadas seguintes com a ocupação territorial, também resultou em assoreamentos no entorno da baía, e sumiço de alguns pesqueiros, tampados pela terra assoreada, afastando espécies como Robalo, Carapeba, Rajada e especialmente o Mero, espécie antigamente abundante na região, e atualmente praticamente inexistente. Muitos pescadores afirmam que a contenção da água e depois abertura abrupta das comportas lava a lama, e promove uma água mais clara, desinteressante para o depósito dos ovos do Mero que prefere ambientes escuros para sua reprodução.
Na pesca feminina a redução dos mariscos também é frequentemente relatada, especialmente quando as comportas da Pedra do Cavalo se abrem, inundando o mangue de água doce e matando imediatamente as ostras que ficam todas “com a boca aberta” como descrevem as marisqueiras. Rosangela, liderança quilombola da região do Kaonge, afirma que:

Marisqueira fervendo Ostras
“Antigamente, uma ida na maré rendia 5, 6 baldes de sururu, agora, agora elas sofrem para conseguir encher 1 balde, que depois de catado vai render 1 kg de sururu.”

Marisqueira catando Sururu

Broto de mangue na lama
Por outro lado, na região do Estaleiro Enseada do Paraguaçu, os pescadores afirmam que a dragagem da lama no fundo da baía tornou a água suja e afastou espécies como o Xangó e o Mirim - espécie usada de isca para pescas maiores. Tal espécie, começou a surgir com a cara avermelhada após a dragagem, e morrer mais rapidamente, até que se extinguiu na região. Não se sabe exatamente o que causava a alteração na espécie, porém, imaginava-se algum elemento químico na água que produzia essa condição. Algas marinhas diferentes também surgiram na região, se reproduzindo rapidamente e tomando os manguezais. Outra insurgência de espécie que vem prejudicando radicalmente a pesca, especialmente de mariscos, é a do vulgo “cansanção”, uma espécie de esponja que em contato com a pele gera intenso prurido, e ardor. A coceira inclusive atravessa a roupa, e permanece nela, sendo muitas vezes necessário jogá-las fora, pois mantém a esponja e seus efeitos. Para preveni-la, muitas marisqueiras utilizam óleo diesel e querosene na pele para evitar a coceira e conseguirem mariscar. Porém, ignoram os efeitos colaterais do uso constante destes produtos químicos na pele, especialmente em exposição ao sol por longos períodos (SILVA, 2018).

Balde de mariscagem com Sururu pescado e querosene
Conforme me afirmaram, as marisqueiras da região acreditam que tal esponja foi trazida de outras regiões por embarcações que circulam no Estaleiro e nas instalações de petróleo da Petrobras na região do recôncavo, e encontraram condições de reprodução intensa a partir dos efeitos sinérgicos dos diversos empreendimentos no estuário.
Assim, demonstra-se aqui as dificuldades de avaliar os impactos indiretos e cumulativos em contextos nos quais grandes alterações ambientais são estabelecidas em série, bem como a complexidade de mensurar como eles se projetam para além dos perímetros considerados nos estudos de impacto que atendem à legislação de licenciamento ambiental ora vigente. (p. 523, MORENO, OLIVEIRA, SHIMABUKURO e CARVALHO, 2018.)
É importante ressaltar que em uma região em que a pesca e mariscagem são base econômica das famílias e garantia alimentar, a queda da pesca pode afetar drasticamente as condições sociais destas famílias. E ainda como afirmou Rafaela, gestora da Resex, é muito importante que se passe a reconhecer os problemas ambientais como problemas de saúde coletiva, já que os impactos ambientais são sinérgicos e se somam formando uma enxurrada de alterações ambientais que refletem diretamente na saúde da população local.

Baía do Iguape vista de cima
Organização Política
A delimitação da área da Reserva Extrativista abrange majoritariamente a área alagável, desconsiderando as terras do entorno na baía, onde vivem centenas de famílias em uma relação extrativista com o mangue e o território do entorno e que também carecem de ser protegidas. Com o estabelecimento da Resex, muitas famílias de pescadores e marisqueiras que viviam às margens do mangue, começaram a sofrer pressões e ações expropriatórias, muitas vezes violentas, dos fazendeiros da região, foi assim, que a comunidade precisou se unir para garantir sua permanência no território e seus modos de vida tradicionais:Foi no conselho gestor que algumas entidades de apoio aos movimentos sociais de base, tais como sindicatos dos trabalhadores rurais de Maragojipe e Cachoeira e a Comissão Pastoral da Pesca – CPP8 divulgaram informações sobre os direitos trabalhistas e previdenciários de pescadores e agricultores (como defeso de pesca e aposentadoria rural) e sobre a legislação agrária de garantia do direito das comunidades quilombolas à terra (ZAGATTO, 2011). A partir de 2005, 18 dentre as 23 comunidades rurais de pescadores/lavradores do entorno da Resex (aproximadamente 2000 famílias) se auto identificaram como quilombolas. Apesar das particularidades de cada comunidade no que se refere à origem e à trajetória do grupo, o elemento comum é que todas ocupam terras anteriormente destinadas ao cultivo de cana dos antigos engenhos de açúcar, muitas vezes sobre as ruínas das antigas casas grandes. (p. 19, ZAGATTO, 2013.)
Como aponta Carneiro da Cunha (2017), as identidades culturais de comunidades tradicionais não podem ser reduzidas às categorias jurídicas ou à racionalidade do Estado-nação brasileiro. Nesse sentido, as comunidades do entorno da Baía do Iguape passaram a se identificar como quilombolas como parte de um processo histórico de continuidade e reinvenção de formas próprias de existência coletiva. A autodenominação "quilombola" integra práticas de reconhecimento e constitui uma expressão contemporânea de resistência frente às ameaças de expropriação e às violências vivenciadas cotidianamente. As mulheres das comunidades tradicionais com quem conversei relatam que a identificação como "quilombolas" foi fundamental para a conquista de diversos direitos. O acesso à água encanada, à energia elétrica e a programas sociais, como o Bolsa Família e, mais recentemente, o Bolsa Verde, está diretamente associado à afirmação de seus modos próprios de vida enquanto comunidades tradicionais.


Marisqueira retirando Ostra no pé dos manguezais
Com todas as questões vivenciadas por estas comunidades ao longo de sua história, essas populações buscaram organizar-se para defenderem-se. Além do processo de auto declaração quilombola, na busca pela garantia de seu território e modos de vida, essas comunidades vêm buscando organizar-se em associações e outras formas organizacionais que lutem por suas necessidades, profissões, classes e grupos específicos.
As diversas Associações de pescadores(as) buscam acessar os direitos garantidos à classe para homens e mulheres como Registro Geral da Pesca (RGP) que lhes garante INSS, aposentadoria, defeso (benefício pago pelo governo para a não pesca de determinadas espécies em período reprodutivo) e outros benefícios. Para além da pesca, outras organizações lutam por educação, por cultura, saneamento básico, água potável, energia elétrica e tantos outros temas na localidade. Destacamos algumas organizações que se mostraram de grande importância para o desenvolvimento da pesca artesanal feminina na Resex do Iguape.

Moradias às margens da Baía do Iguape em Santiago do Iguape
Conselho Quilombola da Bacia e Vale do Iguape, Centro de Educação e Cultura do Vale do Iguape (CECVI) e Marias Felipas

Sururu - moeda local produzida pelo banco comunitário do CECVI
Atualmente o Conselho quilombola da Bacia e Vale do Iguape é composto por 16 comunidades, todas reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares (órgão vinculado ao Ministério da Cultura que inicia os trâmites de reconhecimento identitário de uma comunidade quilombola), e em processo de demarcação pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária- INCRA (Órgão Federal responsável pela demarcação territorial). O Conselho quilombola, que surgiu concomitantemente à Resex a partir da necessidade de organização coletiva, tem atuado desde então formulando estratégias diversas de resistência e valorização de seu território e seus modos produtivos. Como por exemplo, a criação dos núcleos produtivos, que organiza os produtores em grupos, estimula a produção extrativista, e a comercialização dos produtos como dendê, ostra, artesanato, além do turismo etnico que apresenta e valoriza a cultura e o modo de vida local.
Os núcleos produtivos são uma estratégia de organização autogestionária do trabalho coletivo das comunidades quilombolas da Bacia e Vale do Iguape. Atualmente estão em funcionamento os seguintes núcleos: cultivos de ostra (ostreicultura), com 64 famílias; apicultura, com 80 famílias; artesanatos e costuras, com 26 famílias; azeite de Dendê, com 143 famílias; xarope tradicional, com 6 famílias; turismo comunitário com produção associada (Rota da Liberdade), com 26 famílias; uma unidade de Beneficiamento de Pesca e Marisco, com 12 famílias; um Banco Comunitário Solidário, com moeda social própria (Sururu), circulando em 18 quilombos; núcleo de produção audiovisual, com 27 jovens.
Conheça abaixo os núcleos produtivos. https://redecidadaniaquilombola.cecvi.org.br/
(Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/folha-social-mais/2023/09/dupla-lidera-luta-de-quilombos-por-direitos-e-memoria-na-bahia.shtml, acessado em 16/09/2024)
No ano de 2023, conquistaram através de um edital do Bahia Produtiva, uma casa de beneficiamento e um caminhão frigorífico para transporte e distribuição da produção de mariscos de todas as comunidades que compõem o Conselho quilombola, através do CECVI - Centro Educação e Cultura do Vale do Iguape.

Caminhão frigorífico do CECVI
O CECVI é a instituição jurídica responsável pela criação do banco comunitário e da moeda local, o Sururu. As instalações da unidade de beneficiamento ainda não estão em funcionamento já que encontram-se em processo de ajustes conforme as solicitações da legislação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária- ANVISA, para conseguirem o selo que permite a comercialização dos pescados. A casa em que está sendo instalada a Unidade de beneficiamento, conhecida como Casa do Povo, é onde funcionava um antigo armazém particular que comercializava os mariscos dos pescadores locais.
As diversas Associações de pescadores(as) buscam acessar os direitos garantidos à classe para homens e mulheres como Registro Geral da Pesca (RGP) que lhes garante INSS, aposentadoria, defeso (benefício pago pelo governo para a não pesca de determinadas espécies em período reprodutivo) e outros benefícios. Para além da pesca, outras organizações lutam por educação, por cultura, saneamento básico, água potável, energia elétrica e tantos outros temas na localidade. Destacamos algumas organizações que se mostraram de grande importância para o desenvolvimento da pesca artesanal feminina na Resex do Iguape.
A intenção é organizarem-se, mantendo seu modo de vida, inclusive comunitário e assim, garantirem seus direitos e o respeito à sua cultura, seu território e suas práticas. Ao transformarem, sua história e seus saberes em “produtos” na Rota da Liberdade, invertem a chave colonizadora a que os povos escravizados e seus descendentes estiveram submetidos:
Tal como sugere Sztutman, as receitas de resistência no quilombo do Kaonge, como o xarope de Dona Vardé, não apresentam o vínculo ancestral no sentido preservacionista do termo, em que antigas receitas são mantidas e transmitidas de geração em geração. A produção do “novo” faz parte dessas receitas num movimento que coopera para a políticas de autenticidade quilombola. Trata-se mais de um modo de fazer com outros protocolos, como aponta Carneiro da Cunha (2007) (p.339, SILVERA e TAVARES, 2021).
Assim como a auto identificação quilombola, a formação de um grupo especificamente de mulheres, está relacionada com o acesso à direitos. Como me afirmaram inúmeras vezes, na Região da Bacia do Iguape, ali não existem questões de gênero. Mulheres e homens fazem todas as coisas, não existem limitações de gênero, nem violência de gênero. Existem alguns papeis mais masculinos ou mais femininos que outros, mas não é uma questão vivenciada como exclusiva de um gênero e não são fixos, podem ser traaspassados como me afirmou Agda:

Antigo armazém e futura unidade de beneficiamento do CECVI
“A camboa é mais de homem, mas tem mulher que bota camboa também. Eu mesmo tenho minha camboa mais Luciane, minha irmã.”
Inclusive as mulheres afirmam constantemente que são elas quem mandam e que fazem a maioria das atividades e decisões nas comunidades (especialmente nas comunidades do Conselho quilombola), e os homens em geral concordam com tal afirmação. Dos seis Núcleos Produtivos (Ostra, Apicultura, Dendê, Xarope, Rota da Liberdade, Audiovisual) cinco são coordenados por mulheres, além das questões espirituais e o Núcleo de Mulheres Marias Filipas também em mãos femininas: Rosângela está a frente das questões do Marias Filipas, Juci a frente nas questões da Rota da Liberdade (turismo), Mãe Juvani está a frente do Terreiro 21 aldeias e das questões espirituais, Joca é a responsável pela comunicação e audiovisual, Adriana está a frente do Núcleo de Artesanato, Agda Núcleo de Apicultura e Pina é Responsável pelo Xarope de Dona Vardé e seus segredos. Assim, o Núcleo de Mulheres Maria Filipas, atua através das mesmas mulheres que coordenam outros núcleos de gênero misto, mas neste, com políticas voltadas especificamente às mulheres.

Logomarca do Núcleo de Mulheres quilombolas da Bacia e Vale do Iguape - Marias Filipas

Reunião com Núcleo Marias Filipas 18/06/2024
Como me contou Rosângela, coordenadora do Núcleo, quando o criaram, decidiram colocar duas mulheres de cada comunidade para que todas fossem representadas. Porém, com as dificuldades de locomoção pelo território e atividades diárias, acabou-se aos poucos formando um “núcleo duro” com as mulheres do Kaonge e entorno - Engenho da Ponte e Calembá. Como observei, repetidas vezes em minhas visitas à campo, as mulheres quilombolas e extrativistas são múltiplas: são agricultoras, marisqueiras, professoras, donas de casa e quaisquer outras funções que sejam necessárias para o benefício de sua comunidade. Enquanto conversávamos certa feita em reunião do Núcleo Marias Filipas, elas que também são mães e professoras da Escola Municipal do Kaonge cortavam mandioca para a festa Junina que fariam no dia seguinte.
As professoras buscam formações e autorizações para poderem ensinar às crianças de suas comunidades no “modo quilombola". Assim, como me contou Juci, existe atualmente a licenciatura em Educação Quilombola, como formação para dar aulas nas escolas das comunidades quilombolas. A formação é oferecida pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) e para ingressar são necessários documentos que comprovem quem é da comunidade, e que participa ativamente do movimento quilombola. Tal processo de ingresso revoluciona as bases de acesso à educação e instrução no país e promove uma educação realmente efetiva, dentro da cultura e das formas locais. Com possibilidade de instrução escolar e fontes de renda, crianças e jovens, diferente de outras comunidades tradicionais pesqueiras, não desejam ir embora, buscar outro tipo de vida. Rosangela, professora da Escola, conta que às vezes leva as crianças ao mangue como atividade escolar de valorização cultural e se orgulha de ver como eles se sentem à vontade e habilidosos na mariscagem.

Instituto Mãe Lalu
Instituto Mãe Lalu e Associação de Mulheres pescadoras e marisqueiras de Santiago do Iguape
O Instituto Mãe Lalu e a Associação de Mulheres pescadoras e marisqueiras de Santiago do Iguape se misturam. Criado em 2006, para atender a crianças e adolescentes e dar suporte educacional e de saúde aos jovens de 9 comunidades da região, o Instituto Mãe Lalu, presidido por Olgalice, atende principalmente os jovens filhos de marisqueiras e pescadoras da região. Essa congruência resultou na indicação de Olgalice também para presidência da Associação, mesmo não sendo ela própria pescadora e marisqueira na comunidade.A indicação, baseada na confiança e na relação de cuidado estabelecida por Olgalice com essas mulheres e seus filhos no Instituto Mãe Lalu, resultou na expansão dos esforços de Olgalice pela comunidade e as duas atuações se misturam muitas das vezes nas lutas diárias. O espaço doado pelo Instituto Mãe Lalu para a criação da Associação, a horta que faz parte de um projeto aprovado pela Associação para a produção de alimentos e que serve de campo educativo para as crianças, ou ainda os profissionais voluntários do Instituto e que doam seu trabalho também para as questões da Associação.

Pôsteres exibidos no Instituto Mãe Lalu
Como me contou Olgalice, o Instituto é fruto do sonho de sua avó Mãe Lalu, mãe de santo do terreiro de umbanda, e educadora que sonhava em construir uma escola para a comunidade. Seu sonho foi passado de geração em geração na família, e atualmente o Instituto é composto por diversos membros da família, netos, e bisnetos de Dona Lalu que contribuem dentro de suas áreas: educação, engenharia, nutrição, fotografia, para comporem e tocarem o Instituto.Oracy, irmã de Olgalice, Coordenadora do Instituto, e Conselheira Municipal de Educação em Salvador destaca que o foco do Instituto é o desenvolvimento da leitura e escrita a partir dos elementos culturais da região. E por lá se vê estampado em todas as paredes cartazes com o alfabeto criado junto aos alunos com palavras de seu cotidiano, “d” de dendê e “z” de zumbi (dos Palmares). O Instituto atualmente atende 180 crianças de 9 comunidades do municipio de Cachoeira. No terreno existem 4 edificações: O instituto onde as crianças são recebidas, O espaço Pascoal, que leva o nome do pai de Olgalice, feito para eventos, e a Casa Mãe Dete (Odete), onde são recebidos colaboradores que vêm de Salvador e outras cidades para eventos no Instituto. Além disso, um pequeno pedaço do terreno foi doado pela família para a construção da Casa das marisqueiras quando da conquista de verba para a construção da Sede. Outro pequeno pedaço foi doado posteriormente para a Associação, para a construção dos quintais produtivos que foram aprovados no edital do Bahia Pesca, e que serão cultivados e utilizados tanto pelas crianças do Instituto quanto pelas marisqueiras da Associação. No dia em que fui, Olgalice, Odezina sua irmã (proprietária formal do terreno) e seu filho Bruno, negociavam mais um pequeno espaço do terreno para a instalação dos trituradores de cascas que Olgalice conseguiu através de edital para a associação.

Olgalice e Oracy Coordenadoras do Instituto Mãe Lalu

Casa da Marisqueira - Santiago do Iguape
A Casa das marisqueiras, nova sede da Associação de Mulheres quilombolas e marisqueiras do Vale do Iguape foi construída pelo CoNAC - Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombola, através de um edital que previa a verba para construção da unidade de beneficiamento, mas não a verba para a compra do terreno. Assim o Instituto Mãe Lalu decidiu doar 70m2 para a construção da edificação. Como mencionou Olgalice através do Edital FUNDO ELAS conseguiu formação em higiene e manuseio para as marisqueiras e equipamentos para diversas produções. A Casa das Marisqueiras é resultado de diversos editais e outros meios de aquisição de equipamentos e recursos dos quais concorre Olgalice. Como por exemplo, os móveis que foram doados pela Caixa Econômica Federal; os equipamentos digitais que foram conseguidos através do fundo Elas; as máquinas de costura que foram recebidas em um outro edital e que servirá como uma renda alternativa para as que já não podem mariscar no mangue; os quintais produtivos que servirão de resgate das ervas medicinais e receitas tradicionais de suas antepassadas.
Assim a casa das marisqueiras é um lugar que contempla não só o trabalho como marisqueira, mas que entende a mariscagem como um modo de vida, que está além de sua vida produtiva. Como me afirmou Olgalice esta é a diferença entre a colônia e a Associação, a colônia trata da vida funcional da marisqueira, a Associação trata da vida toda dela, e assim engloba questões culturais, questões sociais, de gênero, família, e outras possibilidades quando a vida funcional daquela mulher no mangue já não é mais viável. Porém, a resistência da colônia com relação as Associação, fez com que Olgalice buscasse independentizar as marisqueiras da colônia. Através de uma solicitação na Bahia Pesca conseguiu um mutirão para regularizar a documentação das marisqueiras, na época DAP - Declaração de Aptidão ao Pronaf, que estavam vencidas e com as quais a Colônia não se comprometia. Agora está trabalhando pela atualização dos documentos que passaram para o RGP- Registro Geral da Pesca. Buscando superar as mais diversas dificuldades e limitações que enfrentam essas mulheres, Olgalice liga ela mesma liga para a Bahia Pesca de seu telefone em uma chamada de vídeo, em que os funcionários fazem a entrevista online e depois ela leva e busca as documentações em Salvador para que as marisqueiras possam conquistar seus direitos como pescadoras. Como afirma a gestora:
“As políticas de governo devem ser criadas pensando nas realidades específicas, se não não adiantam de nada, se não chegam às populações que necessitam.”
Outra questão trazida por Olgalice é sobre a saúde das mulheres marisqueiras, já que muitas delas, passam cerca de 7 a 8 horas com a região pélvica dentro da água, assim necessitam de cuidados de saúde voltados a estes corpos. Este ano Olgalice conta com muito orgulho que apesar de diversas dificuldades burocráticas e de padronização, que ignoram as especificidades do lugar, conseguiu inserir o Sururu na merenda escolar pelo PNAE - Programa Nacional de Merenda Escolar (Programa do governo voltado a compras dos pequenos produtores locais os alimentos utilizados nas escolas). Assim, a comunidade se fortalece tanto pelo escoamento de seus produtos, quanto pela manutenção de sua cultura alimentar dentro das escolas. Agora Olgalice tenta conseguir através de um edital da SEPROMI - Secretaria de Promoção da Igualdade Racial e dos Povos e Comunidades Tradicionais um capital de giro que permaneça na Associação e lhe permita comprar todos os pescado das marisqueiras, já que a maior dificuldade no processo de valorização dos mariscos é a urgência em que essas mulheres vivem. O que se pesca é vendido imediatamente a preços muito baixos aos atravessadores devido a urgência de suas necessidades financeiras. Conforme destaca Olgalice, se esse capital de giro fosse conquistado, a Associação compraria das marisqueiras em valor muito maior do que o que elas recebem atualmente. Como ela conta o quilo do Sururu é vendido a R$20,00 para o atravessador, e nessa licitação a associação paga às marisqueiras R$29,00/kg, um aumento de quase 50% em sua renda. A unidade de beneficiamento já possui o selo e o código de barras que costumam ser grandes desafios para a comercialização dos mariscos em outras comunidades. Com a construção da sede dentro dos padrões da vigilância sanitária, os selos e códigos foram conquistados e não são mais um impedimento.

Logomarca Associação de Mulheres Quilombolas e marisqueiras do Vale do Iguape


Instrumentos de trabalho conquistados por editais para a Casa das Marisqueiras
Outra conquista de grande importância da Associação refere-se ao comprometimento com seu impacto sócio ambiental, muitas vezes desconsiderado devido a tantas questões mais urgentes de sobrevivência dessas populações. Porém, a Associação viu nos resíduos mais uma oportunidade de renda e busca utilizar os resíduos dos mariscos, não gerando lixo, e ao mesmo tempo aproveitando-os na feitura de outros produtos que podem também ser geradores de renda para as mulheres. Com a conquista, também via edital, de um triturador e 3 containers (1.000l/500kg) para estocagem das cascas dos mariscos que serão triturados, ensacados e vendidos, já que são úteis em diversas indústrias:
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A casca do Siri triturada é utilizada na fabricação de creme dental e serve também como complemento alimentar;
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A casca do Sururu pode ser utilizada na fabricação de biojoias;
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A casca da Ostra é utilizada na fabricação de tijolos (Chamado bloco verde) e cimento na construção civil e serve também como poderoso adubo natural.
A atuação da Associação de Mulheres Pescadoras e Marisqueiras de Santiago do Iguape, representa o desenvolvimento da luta no território, que extrapola as questões típicas e objetivas a serem defendidas pelas entidades e busca se atualizar e repensar a vida dessas mulheres para além de seus ofícios, a partir de uma perspectiva mais ampla que envolve autonomia, luta ambiental e territorial, cultural, direito à educação, e empoderamento feminino para suas comunidades, através de seus modos de vida ressoando a proposta de Nego Bispo, quando fala sobre o aquilombamento como estratégia de luta:
“E assim, ao invés de termos direitos a políticas públicas... Teremos condições e políticas próprias”. (Bispo, 2019)
Espiritualidade
Na Bacia do Iguape, a pesca artesanal e a mariscagem são muito mais do que técnicas de subsistência ou atividades econômicas: elas se entrelaçam profundamente com a espiritualidade das comunidades locais e com seus sentidos de pertencimento. As religiões de matriz africana, como o candomblé, permeiam o cotidiano de muitas pescadoras e marisqueiras, participando de suas práticas por meio de rituais, cantos, lendas e gestos corriqueiros que honram os orixás, os encantados e as ancestrais. A espiritualidade, nesse contexto, integra saberes ancestrais com práticas de sustentabilidade. Pescar e mariscar é também rezar, pedir licença, ofertar, manejar, cuidar, puxar os fios da memória, escutar o ambiente e, sobretudo, as águas. Iemanjá, Oxum e Nanã, orixás ligadas às águas e aos manguezais, são amplamente reverenciadas como protetoras dessas populações. É comum a realização de oferendas e cerimônias antes e durante as jornadas de pesca e mariscagem. Esses rituais não apenas buscam proteção e fartura, mas também fortalecem os laços comunitários e a conexão com a natureza.
Festividades da região como o 2 de Fevereiro, dia da Rainha do Mar, ou a Festa da Ostra, celebrada no Quilombo Kaonge, exemplificam a fusão entre tradição, espiritualidade e sustentabilidade. São momentos marcantes de celebração da cultura afro-brasileira e de reafirmação do compromisso dessas comunidades com seus territórios. Esses modos de vida desafiam os dualismos modernos entre economia e espiritualidade, entre natureza e cultura, produzindo ecologias emergentes, que reinscrevem a experiência da diáspora como força produtora de mundos onde (re)existir é também continuar pescando, mariscando, celebrando e cuidando.
A entrevista a foi gravada em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, região histórica conhecida por sua forte tradição no candomblé e pela preservação das raízes africanas. Cachoeira fica a aproximadamente 40 km da Reserva Extrativista (Resex) Santiago do Iguape, local sagrado onde, assim como em toda a Bahia, a natureza é entendida como manifestação divina. A Mãe Abalojí aborda a profunda conexão entre a fé e a conservação ambiental, reforçando que proteger esses ecossistemas é honrar os orixás. O documentário também inclui imagens dos festejos de Yemanjá em Salvador, celebrando a relação entre a religiosidade e as águas — uma extensão simbólica da luta das comunidades tradicionais pela preservação do espaço sagrado.



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