Emergent Ecologies
Mulheres na pesca artesanal
Marisqueiras e pescadoras no Sul da Bahia
Segundo o Ministério da Pesca e Aquicultura, a pesca artesanal compõe a maioria absoluta dos pescadores do país. Essa pesca caracteriza-se pela captura em pequena escala, em pequenas embarcações, ou captura em continente, majoritariamente voltada ao consumo familiar e ao mercado local. O saber é geralmente transmitido oralmente e na prática cotidiana entre gerações, e envolve amplo conhecimento do ambiente, marés, ventos e ciclos de vida das espécies aquáticas. Em geral, a pesca artesanal volta-se à manutenção da vida, e não à acumulação do lucro. Por isso, a quantidade de pescadores artesanais não está refletida nos dados oficiais, advindos do Registro de Pesca Artesanal(RGP), das colônias de Pesca ou até mesmo das Associações de pescadores e marisqueiras. Essas instituições possuem atuações e objetivos distintos, e nem sempre atendem às necessidades e contemplam as realidades dos pescadores artesanais de cada localidade.
As colônias, foram criadas em torno de 1920 pela marinha brasileira, e possuía objetivos claramente militares que impunha aos pescadores a filiação para o reconhecimento estatal de sua atividade econômica (SILVA, 2014). Na época foram criadas mais de 800 colônias de pescadores ao longo da costa brasileira, as quais até hoje atuam principalmente na intermediação entre Estado e pescadores, na liberação do Registro de pesca que permite aos “colonizados” atuarem como pescadores, além de oferecer-lhes alguns direitos trabalhistas como aposentadoria, INSS, e seguro defeso que é a garantia de um salário mínimo na época de reprodução de determinadas espécies para que estas não sejam pescadas e possam se reproduzir. Porém o RGP implica em dedicação exclusiva, ou seja não é permitido outro vínculo empregatício, sendo assim que muitos pescadores que possuem outros trabalhos não sejam reconhecidos.
A documentação e o pagamento mensal também são dificuldades que se impõem aos pescadores, que nem sempre conseguem a documentação necessária e a renda mensal necessária para manter seu registro. Nesse sentido, as Associações foram sendo criadas, para representarem as especificidades locais de cada grupo de pescadores e marisqueiras e atuam de maneira geral mais próximas das realidades locais, porém, não possuem força institucional para emitir os Registros de Pesca. Assim é comum pescadores que são associados mas não colonizados. Os representantes das associações em geral são pescadores da própria comunidade o que aumenta o vínculo e a confiança nesses representantes, o que em geral não acontece nas colônias já que estas abrangem uma área muito maior, e estão diretamente relacionadas ao estado. A perspectiva estatal que considera a pesca apenas como atividade econômica, desconsidera, desconsidera os vínculos sócio culturais que a atividade contém, e o reconhecimento estatal pelo RGP, não condiz, em muitas vezes, com os reconhecimentos locais dos verdadeiros pescadores e marisqueiras.
Polveiras
Quando Dona Miracy conta com um sorriso no rosto, que seu pai lhe dizia:
“- Coloca água no fogo que eu vou buscar o jantar!
E voltava cheio de lagostas rapidinho.”
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Ela relembra um passado nostálgico, em que a fartura alimentar era parte de seu cotidiano familiar. De fato, como ela e suas companheiras de pesca/parentes contam, naquela época, não era preciso, nem possível estocar. Como não havia refrigeração, pescava-se “o do dia” e no máximo salgavam-se alguns peixes para conservá-los e vendê-los nas cidades próximas “para comprar a farinha, o açúcar e o sal.”
A pesca artesanal, ainda hoje, representa parte importante da garantia alimentar de muitas famílias em todo mundo. No Brasil, a pesca artesanal é coincidentemente maior nos estados mais empobrecidos economicamente. Conforme dados do Ministério da Agricultura e Pesca, a Bahia é o terceiro estado em quantidade de pescadores artesanais registrados no Registro Geral da Pesca no Brasil, e um dos status com menor índice de desenvolvimento econômico do país (Pnud Brasil, Ipea e FJP, 2022).
Fonte: MPP, 2016.
Jogando a linha
Fonte: MPP, 2016.
Ao mesmo tempo, conforme o mapa divulgado pelo Ministério da Pesca em 2016 (INSTITUTO GEOGRAFAR, 2022), é uma das regiões que mais reúne conflitos ambientais envolvendo a pesca artesanal. Essas populações lutam por manterem seus modos de vida e subsistência – direito e proteção à pesca artesanal através de: demarcação de terras indígenas e quilombolas, delimitação de RESEX (reservas extrativistas) que garantam seus direitos frente às grandes embarcações de pesca; proteção contra a especulação imobiliária e processos de gentrificação causados pelo turismo na região; e lutas ambientais contra empreendimentos portuários e petroquímicos que tem ocupado o litoral e causado impactos ambientais irreversíveis na região.
Neste contexto, a pesca artesanal vem pedindo socorro. Especialmente no Nordeste do país, as famílias de pescadores artesanais lutam para garantir seus modos de vida e sobrevivência frente à devastação ambiental, social e econômica que os assola.
A economia na pesca artesanal, não está voltada ao grande comércio, ou a produção e acúmulo de capital. A produtividade em pequena escala desses grupos visa a garantia alimentar de suas famílias e parentes e a manutenção de seus modos de vida.
Dentro dessas famílias, as mulheres, estão ainda mais radicalmente opostas à lógica de mercado, excluídas pela desvalorização social de funções não produtivistas em uma sociedade de consumo, as mulheres, pescadoras e marisqueiras artesanais, mantêm-se invisíveis. É senso comum que a pesca está associada ao gênero masculino. O substantivo masculino “pescador” domina o universo pesqueiro e o imaginário social dessa atividade.
Pesca de rede
Enquanto homens, com sua identidade central de pescador, saem para pescar, mesmo que em pequena escala e para comércio local, como seu “trabalho oficial”, as mulheres dividem-se em diversas identidades - mãe, avó, filha, doméstica, pescadora… as quais precisam estar em equilíbrio, já que são as mulheres, na estrutura social, responsáveis pelos cuidados de seus filhos, parentes e afazeres domésticos. Resta assim, pouco tempo para a pesca, que se dá na ausência de outras funções domésticas, e na duração possível para atender as demandas doméstico-familiares.
Estes limites não só as fixam no continente, já que devem estar disponíveis caso haja necessidade de algum parente, quanto possuem limitações temporais, associados à rotina de seus lares como cuidar dos filhos fora do período escolar, preparo da alimentação para os maridos e de outros parentes e vizinhos, e tempo de cuidado rotineiro da casa.
Pescando nos corais
Nas funções sociais estruturalmente estabelecidas, não são as mulheres que pescam para vender seus peixes, esta função está relegada aos homens, que possuem maiores possibilidades saindo para o mar, ou praticando tipos de pesca que exigem esforços físicos com maior força, como a pesca de rede ou de tarrafa que resultam em peixes maiores e mais comercializáveis. Mesmo que o beneficiamento destes pescados seja em grande parte feito por mulheres, esse é um trabalho inferiorizado, e invisibilizado que se passa dentro dos limites domésticos.
Risi limpando o peixe
As mulheres pescam para alimentar suas famílias, ajudar parentes e amigos em necessidade, e vender o que sobra como forma de complementar a renda familiar. No continente, se pesca peixes pequenos, não comercializáveis, essa forma de pesca, acaba por excluí-las da maioria dos registros oficiais de pesca, e assim, suas participações nos números oficiais da pesca.
Samburá
Este Projeto, parte dessa sensação de invisibilidade frequentemente relatada e reclamada por tantas pescadoras em encontros, conferências nacionais do setor pesqueiro e pesquisas acadêmicas, e busca olhar para essas mulheres, seus cotidianos, seus saberes, suas histórias de vida, valorizando seu viver como mulher pescadora, na tentativa, ainda incipiente de dar visibilidade a elas.
Pescando na ponte
A partir de 3 diferentes regiões no Sul da Bahia, Serra Grande, Uruçuca- Brasil; Barra Grande, Maraú- Brasil e na Reserva extrativista de Canavieiras – Brasil, buscamos conhecer pescadoras e marisqueiras, suas histórias, seus modos de pescar e de viver, ouvir e refletir sobre suas questões e alegrias, dificuldades e transformações em suas formas de vida, suas receitas, seus costumes, rituais e cotidianos e apresentá-los nessa plataforma.
Encontro da Rede de mulheres marisqueiras e pescadoras do Sul da Bahia
Certamente o universo da pesca é vasto. Se considerarmos toda a pesca artesanal, homens e mulheres utilizam de diversas técnicas e ferramentas na captura das mais diversas espécies. Porém, não nos propomos a nenhuma totalidade. Não estamos interessadas em listar ou registrar todas as formas de pesca em determinada região. Nossa intenção é justamente iluminar a diversidade existente nesse universo pesqueiro, seja em técnicas, em espécies capturadas, ou em histórias de vida, não se pode definir uma só forma. Essas mulheres, são múltiplas, reúnem em si muitas identidades, e não podem, nem devem ser caracterizadas a partir de uma essência.
Manzuá
A pesca atravessa a vida dessas mulheres, de diferentes maneiras. Seja de modo terapêutico a pegar o polvo com as parentes, seja pescar de vara para alimentar a família, seja no beneficiamento dos pescados de seus maridos, pais e filhos, seja na manutenção do convívio familiar, seja na resenha com as amigas e parentes, e de tantas outras formas, essas mulheres são pescadoras e muito mais que isso.